Brasil deve aperfeiçoar avaliação e regulação do ensino jurídico, diz conselheiro do MEC
Na busca por melhorar a situação do ensino de Direito no Brasil, as medidas possíveis para o Ministério da Educação (MEC) são o aperfeiçoamento do sistema de avaliação e o aumento das exigências regulatórias. Já as instituições de ensino precisam atender às particularidades dos alunos e não promover uma educação em massa, feita de qualquer maneira.
É o que diz o advogado André Lemos Jorge, atual presidente da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes) e membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), ambos vinculados ao MEC.
Graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e com mestrado e doutorado pela mesma instituição, Lemos Jorge teve sua primeira experiência no MEC entre 2004 e 2008: foi conselheiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), como representante discente.
Mais tarde, além da atuação como acadêmico e professor, dirigiu instituições de ensino particulares no estado de São Paulo. Ele foi diretor de pós-graduação e pesquisa do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e da Universidade Nove de Julho (Uninove). Nesta última, também foi coordenador do mestrado em Direito.
Entre 2014 e 2016, Lemos Jorge foi juiz efetivo do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), em vaga destinada à advocacia. Durante sua estadia na corte, também foi professor e diretor da Escola Judiciária Eleitoral Paulista (Ejep).
Revisão ampla
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, o advogado destacou que o CNE atualmente reavalia as diretrizes curriculares nacionais do curso de Direito. Trata-se de uma revisão ampla, com foco nas habilidades, no método de ensino e na aprendizagem. “Não é só manter ou tirar determinada disciplina”, indica ele. A expectativa é finalizar os trabalhos até o fim do ano e entregá-los ao ministro da Educação, Camilo Santana.
Entre outros objetivos, a reavaliação servirá para entender se as competências dos alunos são suficientes para o exercício das profissões ligadas à formação no mercado atual; checar se as diretrizes atuais condizem com as exigências do exame da Ordem dos Advogados do Brasil e dos concursos públicos; e dar uma resposta a algumas situações negativas do cenário jurídico, como as notas baixas de cursos de Direito no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade).
Lemos Jorge não vê uma mercantilização do ensino jurídico no país, mas ressalta que a demanda por cursos de Direito é alta. Ele também não considera que os problemas das notas baixas no Enade se concentrem apenas nas universidades particulares, embora admita que algumas delas tratam o aluno “como um número”. Por isso, é “favorável a apertar um pouco mais os parafusos” na avaliação, no reconhecimento e na renovação de todos os cursos.
O advogado ainda disse que os pareceres da OAB nos processos de autorização de cursos de Direito perderam sua função desde que a Ordem passou a se opor a todos os pedidos: “Falta diálogo para a construção de um consenso em torno disso”. Segundo ele, se a entidade quer que sua opinião seja levada em conta, precisa “mudar a postura”, pois o MEC não pode “fechar o mercado”.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Como é o seu trabalho no CNE e na Conaes?
André Lemos Jorge — A Conaes é responsável pela aplicação da Lei do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). A nossa missão é cuidar da avaliação do ensino superior — tanto a avaliação das instituições quanto dos estudantes.
São cinco integrantes do MEC (representantes de outros órgãos e secretarias do ministério), além de cinco membros com notório saber, um docente, um discente e um servidor ligado a instituição de ensino. A Conaes demanda uma visão externa.
Já o CNE cuida do aspecto regulatório, dos ingressos de instituições e cursos. Tanto o credenciamento institucional quanto a autorização de cursos e aumento de vagas competem ao CNE.
São duas câmaras: a Câmara de Ensino Superior e a Câmara de Ensino Básico. Eu componho a de ensino superior. São 11 integrantes em cada, nomeados pelo ministro da Educação, mais um membro nato — os secretários de Educação Superior e de Educação Básica, nas respectivas câmaras.
ConJur — O que explica as notas baixas dos cursos de Direito no último Enade?
André Lemos Jorge — O Brasil é um país muito grande, continental. Existem faculdades espalhadas por todo o país. Algumas delas não investem o necessário. Há talvez uma deficiência de corpo docente em algumas das regiões do país.
Há também uma deficiência no ensino básico. O aluno não chega preparado para fazer um bom curso. Nós temos percebido na Conaes que, quando o aluno tem uma nota mais baixa no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), isso também reflete no Enade.
A quantidade de alunos no Direito é brutal. O Direito ainda, para muita gente, é visto como a opção que sobra. São 671 mil universitários de Direito no país, segundo o último Censo da Educação Superior (2022).
O altíssimo número de estudantes e a baixa qualidade de algumas instituições se reflete no Exame da OAB — um exame, no meu entender, simples, normal, na média. Espera-se que alguém com cinco anos de uma boa formação seja aprovado. Mas não é o que está acontecendo.
Nós temos de aperfeiçoar sempre a avaliação, exigir mais das instituições de ensino e entender como o aluno está chegando, para recuperá-lo um pouco caso venha do ensino médio com algum grau de deficiência — ou seja, fazer com que, nesses cinco anos, ele melhore e aprenda.
Isso passa também por uma revisão do curso de Direito como um todo. Talvez o que hoje é oferecido não seja o que o mercado quer, não seja o que os exames estão pedindo.
ConJur — As notas são mais baixas nos cursos privados. Isso é preocupante?
André Lemos Jorge — É algo multifacetado. Eu não acho que nós devemos virar os canhões para as particulares. Muitas faculdades particulares investem muito, são boas e sérias, têm um corpo docente maravilhoso e contam com grandes programas de mestrado e doutorado, cursos strictu sensu fantásticos etc.
Mas, realmente, o resultado mostra uma fotografia pior no ensino particular. Isso demanda um aperfeiçoamento e um recrudescimento maior do sistema de avaliação. E também depois, quando o curso for reconhecido, na fase de renovação de reconhecimento.
Eu sou sempre favorável a apertar um pouco mais os parafusos, endurecer a avaliação, para que tenha mais qualidade. O que esperamos é que a instituição invista, capacite os seus professores, entenda a peculiaridade de cada aluno e não faça um ensino em massa, de qualquer maneira.
Eu não vejo muito isso nos cursos com muitas vagas. Há instituições de ensino com dois mil, três mil, até mais de dez mil alunos de Direito. Como se espera que uma instituição com esse tamanho possa acolher e entender a peculiaridade de cada um?
Sobretudo nas particulares com milhares e milhares de alunos, o aluno recebe uma carga de informações totalmente pasteurizada. O aluno faz que aprende, a instituição faz que ensina. Isso acontece. O aluno é tratado como um número, mais uma matrícula. E aí acontecem os resultados baixos no Enade e a aprovação baixíssima na OAB.
ConJur — Os alunos chegam mais despreparados às universidades particulares?
André Lemos Jorge — A seleção das públicas, na média, é bem mais rigorosa do que a das particulares, obviamente que acabam pinçando os melhores alunos do ensino médio. Então isso também vai se refletir na média do Enade.
ConJur — O que as universidades e o MEC podem fazer para melhorar essa situação?
André Lemos Jorge — Para as instituições de ensino, o primeiro passo é receber bem o aluno e tentar atender às particularidades de cada um, no nível de aprendizado que ele tem. Não só porque ele está pagando mensalidade. É preciso pensar que a instituição tem uma responsabilidade social. Todo mantenedor tem de pensar com cabeça de educador. Não pode ser um mantenedor que só pensa no lucro.
Da parte do MEC, a medida é sempre aperfeiçoar a avaliação. Nós trabalhamos na Conaes um tripé: instrumento de avaliação, cesta de indicadores (que mostram quais são os fatores mais importantes) e o Enade. No regulatório, é preciso apertar um pouco o parafuso, subir as exigências e definir que não vai entrar qualquer um.
Atualmente nós temos cerca de 1,9 mil cursos de Direito no Brasil. O que o MEC pode fazer é exigir que a qualidade seja melhor, tanto para autorizar o curso quanto para renovar o reconhecimento.
No CNE, propus uma reavaliação das diretrizes curriculares nacionais. É o que está em curso hoje. Quando cheguei lá, notei que havia uma série de pedidos, espalhados pelos nossos sistemas, para inclusão de disciplinas — por exemplo, Direito Eleitoral, Direito Urbanístico e Direito Militar — como diretrizes curriculares obrigatórias.
Mas, se o CNE só analisar a inclusão ou não de disciplinas, o curso de Direito vai ter dez mil horas. Então, o colegiado do CNE resolveu fazer uma revisão mais ampla. Não é só manter ou tirar determinada disciplina. Há uma série de coisas: as habilidades, o método de ensino, a aprendizagem etc. Em vez de decidir sobre cada disciplina, apensamos tudo e ampliamos o escopo da discussão, para revisar as diretrizes curriculares nacionais como um todo.
Nós queremos entender o que os cursos estão oferecendo; se as diretrizes estão sendo seguidas; se podemos colocar algo a mais para melhorar a qualidade; se as habilidades pedidas pelo mercado estão protegidas pelas diretrizes; se as competências com as quais os alunos saem da faculdade são suficientes para exercer a profissão; se os exames e concursos estão pedindo o que está nas diretrizes etc.
As diretrizes são boas e modernas, mas demandam um aperfeiçoamento. Se o resultado no Enade é baixíssimo, se a aprovação na OAB é tão baixa, se as vagas não são preenchidas nos concursos públicos e se há um excesso de pessoas formadas em Direito desempregadas, alguma coisa está descolada. A função do CNE é dar uma resposta a isso.
Abrimos um debate muito amplo, há cerca de três meses. Convidamos uma série de professores de diversas instituições e estados. Estamos agora na fase de receber contribuições por escrito. Espero que até o final do ano consigamos entregar o trabalho para o ministro da Educação e, quem sabe, ter uma nova diretriz homologada.
Estamos revisando tudo. É um trabalho difícil. Há resistências, como instituições de ensino acomodadas. Há divergências dentro do próprio conselho, cujos membros têm posições variadas. Mas uma das missões do CNE é ser uma espécie de fiador de uma diretriz adequada, útil e bem qualificada. A decisão vai ser muito frutífera.
ConJur — Existe uma mercantilização e um enfraquecimento do ensino jurídico no país?
André Lemos Jorge — Hoje existem mais de 2,5 mil instituições de ensino superior no Brasil. Ou seja, se há 1,9 mil cursos de Direito, a maioria das instituições tem um curso de Direito. Isso porque é um curso que absorve alunos e tem uma demanda alta.
O mantenedor pede autorização de cursos que têm procura. E o Direito é sempre um dos cursos mais procurados. Não sei se há mercantilização. É demanda mesmo. Temos de entender o ponto de vista do mantenedor que paga aluguel e professores para sustentar sua instituição. Não se pode exigir de um empresário que sua empresa seja deficitária.
ConJur — Em novembro do ano passado, durante a Conferência Nacional da Advocacia, a secretária-geral do Conselho Federal da OAB, Sayury Otoni, defendeu que os pareceres da Ordem nos processos de autorização e reconhecimento do ensino jurídico precisam ser vinculantes. Segundo ela, atualmente eles são uma “mera opinião” dentro do MEC. Seria positiva essa ampliação do poder da OAB para decidir sobre o reconhecimento dos cursos jurídicos?
André Lemos Jorge — Antes, a Ordem aprovava um curso, rejeitava outro, abria diligência em outro, orientava em outro etc. Até a gestão de Fernando Haddad como ministro da Educação (2005-2012), o MEC seguia quase integralmente a opinião da OAB nos pareceres para autorização.
Depois disso, a OAB passou a emitir pareceres contrários ao reconhecimento de todos os cursos, indistintamente. Se todos são negativos, por que o MEC precisa do parecer? Assim, o MEC mudou sua postura e deixou de seguir integralmente a OAB.
Por muitas vezes, eu conversei com amigos da OAB e disse que era necessário mudar a postura, para avaliar com muito rigor, mas opinar pela aprovação dos bons cursos. A OAB precisa dizer “não” para a maioria, sim. Ela pode ser rigorosa. Mas dizer “não” para tudo não faz sentido.
Mesmo que a OAB esteja preocupada com uma mercantilização, o MEC não pode fechar o mercado. A OAB perde a oportunidade de realmente participar e opinar sobre quais propostas são boas ou ruins.
Creio que, quando a OAB mudar essa postura, vai haver também por parte do MEC uma abertura para o diálogo. Hoje, falta diálogo para a construção de um consenso em torno disso.
ConJur — O credenciamento de cursos de Direito a distância deve ser autorizado pelo MEC?
André Lemos Jorge — Minha opinião como conselheiro é esperar a deliberação do ministro. Foi constituído um grupo de trabalho (GT) para verificar essa possibilidade com relação a alguns cursos, entre eles Direito. Hoje estamos em meio a uma moratória. Todos os pedidos de cursos de educação a distância (EaD) que chegam ao CNE estão suspensos.
Dentro do GT, hoje se discute especialmente quais serão os critérios para autorizar ou não a oferta de cursos EaD para cada área. Muito provavelmente neste primeiro semestre teremos novos critérios.